domingo, 16 de janeiro de 2011

O Deus dos sobreviventes



Estava deitado, assistindo a uma reportagem sobre a morte de três bombeiros que trabalhavam nos resgates no Rio de Janeiro.
Foi quando pude assistir à entrevista feita a um dos bombeiros sobreviventes ao desabamento que surpreendera seu grupo.
Segue a frase dita pelo bombeiro sobrevivente:
"Perdemos três companheiros, eu tive sorte de sobreviver graças à interferência direta de Deus".
Estas frases e sentimentos são comuns a sobreviventes de desastres, não consigo entender porque algumas pessoas se acham no direito de serem "divinamente" livradas da morte, enquanto outras não tem a mesma sorte.

Ontem um tio meu estava contando que leu uma notícia no jornal que relatava um acidente com dois irmãos em uma moto onde o piloto sobreviveu. Segue frase dita pelo piloto da moto:
"Graças a Deus eu não sofri nenhum arranhão".
O pior é que seu irmão que estava na garupa da moto estava morto ali no chão, próximo a ele.

Este tipo de entrevista é comum, será que nosso cérebro está programado para acreditar que um ser amoroso e misericordioso fora responsável pela nossa sobrevivência a desastres enquanto este mesmo ser torna-se indiferente quanto a outros ao nosso redor?

Li uma reportagem no jornal A Tribuna de ontem onde estava relatada uma "experiência" de uma família evangélica. Não lembro exatamente se eles perderam familiares nos desabamentos ocorridos no Rio de Janeiro ou se receberam notícias que estavam vivos. Disseram que iriam viajar para lá.
Uma jovem, ao receber a notícia sobre os familiares, abrira a Bíblia em Isaías 40, onde lê-se "Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus.".
Estavam se preparando para ir ao Rio, porém, foram à igreja naquela noite e "Deus" falou com eles: "Vocês não devem ir ao Rio de Janeiro amanhã porque se forem irão morrer na estrada".
Imagino eu o quanto estas pessoas se acharam importantes para "Deus", pois, "Deus" esquecera de fazer o mesmo com as seiscentas pessoas que morreram no Rio. "Deus" utilizou sua infinita capacidade de onisciência para salvar uma família, aleluia, enquanto isto, ele não fora capaz de avisar aqueles que foram soterrados.
Somente pelo pequeno trecho da entrevista desta jovem evangélica já deduzi qual igreja ela frequenta (não vou comentar porque não vem ao caso).
Mas é algo típico desta determinada igreja evangélica, e, sem obter detalhes de como "Deus" havia feito o comunicado posso dar meu relato de como deve ter ocorrido.
Creio que esta família foi ao culto para cumprir agenda. Estavam tristes e debilitados com as notícias recebidas sobre os familiares. Ao término do culto devem ter chamado um daqueles que vestem paletó e oram colocando a mão na cabeça das pessoas e disseram: "Nós pretendemos ir ao Rio amanhã mas gostaríamos de consultar a 'Deus' para saber se podemos ir". Em seguida ajoelham, enquanto juntam-se ao homem de paletó mais algumas pessoas (todas influenciadas por dezenas de notícias que estão sendo exibidas a semana toda), e, após orarem pela família que pretendia viajar, um daqueles que estavam de pé, orando pelos ajoelhados diz: "O Senhor me revelou que vocês não devem viajar porque senão irão morrer na estrada", ou pode ter sido: "Quando orávamos por eles, o Senhor me deu uma visão onde eu via o transporte que eles estavam (isso quando não dizem de que vão viajar) sofria um acidente e todos morriam".

Pois é, assim caminha a humanidade, onde o "Deus" todo-poderoso seleciona quem ele quer que continue vivendo ou não.

É mais fácil ir se iludindo assim do que acreditar que não há nenhuma interferência "divina" diante das calamidades e catástrofes da vida.

Mas nem tudo está perdido. Vi uma outra entrevista a uns dias atrás onde uma senhora estava sentada em um banco de praça chorando e disse: "Na minha vizinhança apenas minha casa ficou de pé, saímos correndo, desesperados, muito barulho, meus vizinhos perderam tudo, meu Deus, o que vai ser deles?". Isso mesmo, este é o tipo de pessoa difícil de se encontrar, a pessoa realista, que se preocupa com o próximo. Porque o comum seria ela dizer: "Graças a Deus que minha casa não desabou, aleluia, Deus é bom." sem mesmo se preocupar com os vizinhos. Daí concluo que esta senhora não seja uma "serva de Deus", porque se fosse,  ela não perderia a oportunidade de exaltar ao seu "Deus" por ter colocado as "mãos" sobre sua casa.

Fim do relato.

Odlave Sreklow.