quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vai fogo aí?






Desde pequeno aprendi que tínhamos que viver sempre andando.

Parávamos temporariamente em um lugar, caçávamos, pescávamos, colhíamos frutos e, assim que todos os recursos do local se acabavam, tínhamos que ir para outro lugar.

Fui ensinado que existem seres que nos vigiam, abençoam, amaldiçoam e castigam. Esses são os deuses.

Nossas fêmeas eram consideradas sagradas, pois geravam novas vidas.

Acreditávamos que recebiam dos deuses este poder.

Certo dia, um homem da tribo trouxe um galho de árvore onde havia uma luz igual à que vemos no alto, esta luz destruía o galho, em seguida ele mostrou como passar aquela luz deste galho para outro. Chamamos a luz de fogo.

Perguntamos onde aquele homem tinha encontrado o fogo e, ele disse que havia recebido dos deuses e, a responsabilidade de manter o fogo aceso foi dada a ele diretamente dos deuses porque esta era sua missão.

Certa vez me atrevi a colocar a mão no fogo sem que alguém visse, mas, isto me causou uma grande dor. Os deuses não gostaram.

Estávamos festejando o deus do fogo, colocamos o fogo em uma grande quantidade de madeira e passamos a dançar ao redor dele. Um pequeno animal veio correndo e caiu dentro do fogo, eu percebi, peguei um galho e o puxei para fora. Comi o animal e percebi que seu gosto havia mudado.

Contei para os outros e, desde então, passamos a colocar os animais no fogo antes de comê-los.

Ao homem que havia recebido o fogo dos deuses chamamos de sacerdote.

Usamos o fogo dos deuses também para queimar áreas com bastante mato e, aprendemos a utilizar a terra plantando sementes e, colhendo após um tempo determinado.

Descobrimos que poderíamos assim, produzir alimento e, permanecer por mais tempo em um único lugar.

Fizemos cabanas fixas com árvore, as anteriores eram com pele de animal.

O sacerdote disse que tínhamos que criar uma grande cabana para que o fogo permanecesse aceso e também para receber os deuses.

A esta cabana chamamos de templo.

Assim, o sacerdote possuía o controle do fogo e, era o único que via e falava com os deuses.

Aprendemos também que os animais poderiam ser presos e, assim, gerar novos animais. Não sabíamos como isso acontecia porque pensávamos que somente nossas fêmeas gerassem vida.

Pensávamos que os animais eram produzidos pelos deuses como os encontrávamos.

Foi aí que descobrimos que os animais geram novos animais, e, passamos a aprisioná-los para não ter mais que caçar.

Descobrimos que as fêmeas só geravam novas vidas quando estavam juntas com um macho.

Quando colocamos várias fêmeas com um único macho, descobrimos que somente um era necessário para que todas gerassem um novo animal.

Descobrimos assim, observando os animais, que nossas próprias fêmeas não geravam a partir dos deuses, mas, dependiam de nós, os machos, e, assim como aprisionamos os animais, passamos a aprisionar várias mulheres para gerar novas vidas, sendo assim, poderíamos colocar estes novos machos gerados para trabalhar para nós na criação dos animais e na plantação.

"Bem aventurado o varão que enche a sua casa de filhos."

Gerávamos machos e fêmeas, os machos serviam para o trabalho, as fêmeas poderiam ser negociadas para outros machos a usarem na reprodução, porém, as fêmeas novas deveriam ficar longe de um macho até que fosse negociada, caso fosse descoberto que uma fêmea teve contato com um macho antes da negociação, deveria ser morta e os bens devolvidos ao comprador.

Descobrimos que o fogo dos deuses servia para criar armas, com as armas invadimos e atacamos outros povos, matamos os homens e roubamos fêmeas e filhotes.

As fêmeas roubadas serviam para fazermos sexo sem necessidade de procriar, apenas por prazer.

Os filhotes machos serviam para o trabalho.

Os animais que tínhamos e, os frutos que colhíamos eram dádivas dos deuses, sendo necessário levarmos parte para o templo, para o sacerdote entregar aos deuses.

O sacerdote nos ensinou a usar a água da grande deusa nas plantações, ela trazia vida a nossa colheita.

A grande deusa, a deusa da água era inimiga do deus fogo e podia matá-lo.

A deusa da água enviava água do alto, para que esta água não apagasse o grande deus fogo que fica no alto, nós fazíamos um ritual com dança e matávamos animais com o fogo.

As fêmeas que deitavam com machos e não geravam nova vida eram mortas, pois, o sacerdote nos ensinou que as que não geram vida são amaldiçoadas e trazem maldição à toda tribo.

As fêmeas geradas eram de propriedade do macho, dono da fêmea geradora. As fêmeas geradas não serviam para procriar na mesma cabana, descobrimos que os filhotes nasciam diferentes, fracos, defeituosos.

Sendo assim, estas fêmeas eram vendidas. A entrega da fêmea vendida era feita em um ritual que chamamos de casamento.

Neste ritual as fêmeas eram negociadas por animais ou frutos e entregues ao novo proprietário.

Estou cansado, meus dias chegam ao fim, e, acabei de descobrir que batendo uma pedra na outra, próximo a galhos secos, consigo gerar o fogo.

Demonstrei como fazer mas todos disseram que eu estava indo contra os deuses e que eu não podia gerar fogo, isto era o papel do sacerdote.

Disseram que se eu fizesse novamente os deuses iriam me matar.

Sabe o que fiz?

Continuei com minhas pedras e meu fogo, que, não aprendi com nenhum deus.

E sabe o resultado? 

Nenhum deus me matou até hoje, e, estou contando isto para vocês.





Inspirado por leituras antropológicas, culturais e de historia da civilização humana.

Odlave Sreklow.

9 comentários:

  1. Sensacional, Odlave. Brilhante mesmo. Está tudo dito, e da forma como eu mesmo escreveria se estivesse muito inspirado. De forma que não sei mais o que comentar... Abçs.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, Odlave! A grande revolução da humanidade foi quando alguém "roubou" o fogo dos deuses. A partir daí, sentiram-se mais autônomos, menos dependentes. Mas os sacerdotes em todos os tempos, possuem o dom de continuar se interpondo entre os deuses e os homens.

    ResponderExcluir
  3. Obrigado Isa.

    Pois é, Edu, Olha o sapatinho de fogo aí. (rsrs).

    Odlave Sreklow.

    ResponderExcluir
  4. Odlave, ótima crônica/resumo da história humana.

    Dizem os antropólogos, que uma das descobertas que nos fizeram humanos foi exatamente o fogo, e a utilização dele para cozinhar. Foi quando o homem passou a gastar menos tempo comendo e digerindo (macacos como o gorila, passam praticamente o dia todo comendo), e passou a ter tempo para outras coisas, como a socialização.

    Outro ponto importante foi a separação de atividades entre machos/fêmeas/filhotes. Entre os neanderthais, por exemplo, machos e fêmeas saiam às caças, e morriam fazendo isso, enquanto entre os humanos ancestrais, apenas os machos (ou na maioria dos casos) eram encarregados da caça, de modo que sua sobrevivência era maior.

    ResponderExcluir
  5. É Bill,

    A minha crônica navega em diversos assuntos que dariam diversos outros diálogos.

    Cada leitor se atenta a um ponto específico de acordo com sua visão.

    Obrigado pelo rico comentário.

    Ainda bem que já não somos "NeanderETalz", rsrs.

    Abraços,

    Odlave Sreklow.

    ResponderExcluir
  6. Odlave

    Muito bom, criativo e prazeroso texto!

    Talvez pela fase que estou vivenciado, de extrema revolução e rebeldia, onde o que eu quero é o extermino de toda e qualquer religião, o ponto onde quero tecer um simples e breve comentário é a parte final, onde você diz que batendo uma pedra na outra produzia o fogo, sendo que todos na sociedade rejeitaram, e ainda por cima os deuses não castigaram você. Rsrsrsrs

    Ou seja, por mais que venhamos falar, até mesmo comprovar, seja racionalmente ou factualmente, sempre existirão – e estes, serão maioria – aqueles que preferiram ficar debaixo do jugo religioso.

    Uma curiosidade é que duramente muito tempo eu vivia debaixo deste pensamento religioso e determinista divino, quando me libertei disto já há um bom tempo, a sensação foi igualzinha a que descreveste neste conto maravilhoso, de descobrir fazendo você mesmo o fogo. Rsrsrsrsrs

    ResponderExcluir
  7. Prezado Odlave

    O teu ensaio sobre "fogo" transportou-me ao meu passado de menino pentencostal, quando viajava em cima de camionhões para espargir o fogo do "espírito" pelas aldeias e cidades.
    Era dificil cantar um hino que não falassse em "fogo"(fogo de poder) e na hora do "apêlo" era o tal do fogo do inferno(rsrsrs).

    Hoje, tá tudo moderno, já tem até sapatos de fogo, para animar a plateia.

    Mas como o crente pentencostal é uma alma fogosa, hein?

    ResponderExcluir
  8. Grande Levi,

    Realmente conforme disse já duas vezes, escrevi este texto colocando em cada ponto um apontamento para determinado assunto, onde, cada leitor está percebendo alguma coisa específica.

    Realmente quando nomeei um "dono" do fogo era sobre o pensamento de "propriedade" do Espírito que assola o meio pentelhocostal.

    Abraços,

    Odlave Sreklow.

    ResponderExcluir
  9. Os deuses não morreram, eles continuam aí, tanto na área religiosa independente da matriz com seus mantras, seus dogmas, suas falácias aniquilando o senso crítico. E também eles estão no lado da ciência, cada vez mais hiperespecializada onde alguns experts expôem suas profecias baseados em estudos árduos...
    Abraços
    Marcos Vinicius

    ResponderExcluir