Era uma manhã normal de sábado.
Tive que ir à faculdade, perdendo assim, uma partida de futebol dos meus meninos. Ainda bem que eles jogaram em casa.
Resolvi ir de ônibus, assim, economizava gasolina e, aproveitava para continuar minha leitura de "As formas elementares da vida religiosa" de Émile Durkheim.
No percurso de minha casa à faculdade existe um terminal, o terminal de Campo Grande, no município de Cariacica.
Peguei o ônibus aqui em Viana, desci no terminal de Campo Grande, e entrei na fila do outro ônibus em direção à faculdade.
Havia em um banco próximo à fila um senhor, aparentemente idoso, barbudo, sujo, carregando um saco típico dos andarilhos e moradores de rua. Alguns levam sua "casa" nas costas.
Assim que o ônibus chegou, o senhor mendigo entra senta e, nós, os "normais" vamos ocupando os demais lugares, deixando-o "à vontade" em seu banco.
Eu, logicamente bastante perfumado não iria querer sentar ao lado dele.
Sentei de costas no fundo do ônibus porque acho melhor para ler, nas frenagens fico apoiado com as costas no banco e não fico indo e voltando para a frente.
Olhei para trás e vi que uma linda garota havia sentado ao lado do mendigo, logo que percebera o aroma ela se levantou e ocupou o banco do outro lado, na direção do banco que eu estava, também de costas.
Estava tranquilo, lendo e ouvindo música de meu celular. Coloco música para ler, principalmente em inglês, ou apenas música clássica para não ter minha atenção desviada por conversa de terceiros, porque em ônibus sempre tem aqueles que conversam pra todos ouvirem.
Quando o ônibus andava, dava para respirar, quando parava eu treinava minha capacidade de mergulho. Olhava para as pessoas, umas com a camisa no nariz, outras com a cabeça para fora da janela.
Até aí tudo normal.
De repente dois homens começam a conversar. Minha atenção é voltada ao diálogo:
"O fiscal tinha que ter visto isso e não deixar que ele entrasse no ônibus."
"Ele tinha que ser colocado para fora"
"Isso é uma pouca vergonha"
As pessoas começaram unanimemente a concordar com o "massacre do mendigo".
Até aí, tudo normal (?). Sim, por incrível que pareça, era normal.
Um dos homens desceu ao chegar em seu ponto, desejando "boa sorte" aos demais e rindo muito.
Neste instante eu já havia reduzido o volume da música e marcado a página do livro onde estava lendo.
Uma frase do homem que ficara, direcionada aos demais fez com que eu tirasse os fones do ouvido.
"Isso não é de Deus".
Pensei: "Opa, alguém me chamou" (não que eu seja Deus, mas, pelo fato de que Deus está sempre nas frases que ouço no meu dia-a-dia. Sempre tem um que chega e concede autoria de coisas normais ao todo-fuderoso, ops, todo-poderoso. Futebol, lá vem um gol feito graças a Deus. Economia, lá vem um graças a Deus porque troquei de carro. Saúde, lá vem um graças a Deus porque a gripe foi embora. E por aí vai.)
A frase seguinte foi a gota d'água: "Isso não é um ser humano!!!".
Olhei para o homem e veja o diálogo que se seguiu:
Odlave - Se ele não é um ser humano o senhor poderia por gentileza definir para mim o que ele é?
Sujeito - Não, eu não estou discriminando, eu não disse que ele não é um ser humano.
Odlave - Mas foi exatamente o que eu acabei de ouvir. Você disse "isso não é um ser humano". Eu acordei em minha casa, beijei esposa e meus dois filhos, tomei um banho, tomei café, coloquei uma roupa legal, passei perfume Ferrari e estou indo à faculdade. Para mim é muito confortável dizer que este senhor não é gente. Para você também. Agora, eu não conheço ele, você conhece ele? Você sabe o que se passa na vida dele para querer simplesmente colocá-lo para fora do ônibus? Você quer o que? Que ele vá a pé de Campo Grande até a Serra?
Sujeito - Rapaz, eu bebia muito, era para eu estar igual a ele, porém, eu li a Bíblia e conheci a Deus.
Odlave - E daí? Eu te pergunto, e daí? Eu nunca fiz nada para ajudar este senhor e não é por isso que vou chutá-lo para fora do ônibus.
Sujeito - Eu li a Bíblia e conheci a Deus, você já leu a Bíblia?
Odlave - Quatro vezes está bom para você? Já li a Bíblia judaico-cristão quatro vezes, li parte do Alcorão, vedas, livros hindus e budistas, revistas, sites, blogs diversos outros conteúdos sobre religião e não encontrei em nenhum deles argumentos para colocar um mendigo para fora do ônibus. Muito pelo contrário, por ter lido tais livros é que sei que devo respeitá-lo e, se possível ajudá-lo e não discriminá-lo. O mesmo Deus que você conhece ele também conhece.
Sujeito - Deus faz a parte dele mas nós temos que fazer a nossa.
Odlave - Você acha que ele está sem tomar banho e sem comer porque quer? Você acha? Quando eu era criança, um tio meu "surtou", foi a pé de Campo Grande a Guarapari, dias sem tomar banho e sem comer. Ele não foi pelo acostamento, ele foi pelo centro da pista, os carros e caminhões iam desviando dele. Um caminhoneiro que o reconheceu comunicou a nossa família, ele foi encontrado na mesma situação deste homem aqui.
Sabe qual o seu problema? A sua religião te ensinou a ser egoísta, nós os ocidentais somos egoístas, nosso lema é "cada um por si e Deus por todos".
Nós somos mesquinhos e egoístas. Eu sou mesquinho e egoísta.
Observei que o olhar e semblante das pessoas haviam mudado. Olhei no olho de uma senhora e um jovem e percebi que eles haviam agora observado o outro lado da coisa. Antes criticando, agora refletindo.
Chegou ao meu ponto, dei sinal, desci, o mendigo prosseguiu seu caminho, não sei se o verei novamente. Nada fiz por ele. Talvez minhas palavras sirvam para aquelas pessoas, talvez não.
Acho que eu fiquei um pouco nervoso em minhas palavras, o nervosismo faz esquecermos detalhes importantes.
Ao descer do ônibus veio em minha mente algo que eu não poderia ter esquecido. Uma frase do livro "Porque você não quer mais ir à igreja?" que é: "Você realmente conhece Jesus?".
Eu me odiei ("ai, que ódio, rsrs") porque para fechar o assunto deveria ter dito:
"Você diz que já leu a Bíblia e que ela mudou sua vida, certo? Você é cristão, certo? Mas será que você conhece realmente Jesus? Se sim, onde ele tomou banho nos quarenta dias e quarenta noites que passou no deserto? Quer saber, aquele homem é Jesus depois de quarenta dias no deserto sem barbeador, água ou perfume Ferrari. Boa viagem senhor religioso.".
História real, aconteceu dentro do ônibus 591 (Campo Grande x Serra).
Texto escrito por um idiota nada religioso:
Odlave Sreklow.
Imagem: http://www.artshopping.com.br/lojavirtual/images/charge_congresso_mendigo.gif
'Não, eu não estou discriminando, eu não disse que ele não é um ser humano', disse o 'humano'. Mas anteriormente havia dito 'Isso não é de Deus'. Simples assim...mas então os seres que não são humanos não são de Deus, correto? Esse parece ser um argumento daqueles que criticavam Darwin (que não é lido mas é criticado por aquela turma do 'não li e não gostei') por sua teoria da evolução. Como poderia o ser humano ser despido de sua genealogia tradicional? Mas estes mesmos diziam que outros povos que não fossem os caucasianos eram inferiores (Montesquieu disse que os negros não tinham alma pois Deus em sua infinita inteligência não colocaria alma num ser tão esquisito (segundo uma visão eurocentrista). Ou seja, você é de 'deus' se você está no esquema dominante (os anjinhos são loiros e escandinavos) ou se submete à ele (negros podem, desde que não sejam lideranças, devem ir para o seu 'lugar natural, ou seja cantar e dançar).
ResponderExcluirabs.
Ps Odlave presidente!
Odlave
ResponderExcluirDescreveste a realidade nua e crua da falsa moral dos que fazem da História Sagrada o trampolim midiático para vender o "Aceite Jesus como seu Salvador".
Esse estado deplorável de cegueira fundamentalista só faz semear o preconceito que anda na contramão da compaixão. Tremo, só em pensar que essa grave epidemia vem crescendo em progressão geométrica.
Marcos Vinícios e Levi,
ResponderExcluirSeus comentários sempre enriquecendo esta sala humilde.
Não sou digno que entreis em minha morada.
Sou um servo devedor, não tenho ido à vossa casa para compartilhar do mesmo alimento.
Obrigado mesmo por dirigirem suas palavras a tão idiotizado ser.
Sei que ocupado todos estão, mas, acho que o problema principal é que minha ferramenta de trabalho é meu computador, então, sento e trabalho mesmo quando quero apenas relaxar (uma droga isto). Espero mudar de profissão um dia, para que, ao sentar aqui, possa visitar meus amigos com mais frequencia e não me sentir obrigado a trabalhar enquanto o prato está na mesa, rsrs.
Abraços fraternais,
Odlave Sreklow.
Se Jesus voltasse hoje, tenho certeza que levaria para sua companhia pessoas como você Odlave, do contrário a eternidade seria insuportável com essa cambada de egoistas e hipócritas.
ResponderExcluirNão posso aceitar uma religião que têm verdadeiras mansões como templos enquanto crianças dormem ao relento.
Se algum mendigo ou morador de rua entrar em um templo religioso durante um culto, experimente dar uma olhada nas expressões ao redor, inclusive os dos líderes.
É por isso que eu digo, cristianismo se faz com atitudes de amor ao próximo e não berrando o nome de Deus a toa e em alturas insuportáveis.
Se eu tivesse nesse ônibus te daria os parabéns e um grande abraço!
Você é um cara de Deus, mesmo não acreditando nele! hehehehe
Abraço!
Alexandre,
ResponderExcluirSeus comentários como sempre retiram lágrimas de meus olhos.
Vejo sinceridade no que dizes e tenho em ti um grande irmão.
Com certeza se você estivesse no ônibus estaríamos do mesmo lado.
A um tempo atrás eu escrevi um texto "O ateu salvo", no fundo, no fundo, me identifiquei muito com o texto.
Abraços,
Odlave Sreklow.
Odlave, que cena, hein?
ResponderExcluirnão vou repetir o óbvio ululante, mas será que você não entendeu errado o que o homem disse?
"isso não é de Deus".
é possível que ele na verdade estivesse dizendo: "essa situação humilhante e marginal não é de Deus, não é assim que uma criatura de Deus deveria viver..."
e ai, é possível ou realmente esse contexto não existiu na fala dele?
abraços. quando tiver tempo vai conhecer o meu boteco. não sabe do que estou falando? juntei meus dois blogues num só e virou botequimdoedu.
vai lá tomar um chopisss
Não Edu,
ResponderExcluirAo dizer "isto" ele estava se referindo ao mendigo e ao dizer que "isto não é de Deus", estava se referindo novamente ao mendigo.
E para completar ainda disse "Isto não é um ser humano".
Tanto que se eu não intervisse, provavelmente ele iria ter uma "revelação" de que o "senhor" havia dito a ele para todos colocarem o velhinho para fora do ônibus.
Abraços,
Odlave Sreklow.
Grande Odlave
ResponderExcluirSinto-me feliz se, de certa forma, minha sinceridade te emociona. Creio que é porque temos semelhança de pensamentos em determinadas questões.
Quanto ao fato de me considerar um irmão, não tenha dúvida que a recíproca é verdadeira.
Sobre a questão do desprezo pelo mendigo ainda digo mais...
...alguns que acreditam que mendigos não são de Deus, também atribuem isso aos animais. O que me revolta ainda mais, pois se existe algo que é puro, isento de culpa e vítimas dos seres humanos são os animais.
Sobre o seu texto "o ateu salvo" fiquei curioso em lê-lo, tanto que tenho uma opinião a respeito e não me admira se for mais uma coincidência de nossas opniões.
Penso que o ateu bom tem uma grande vantagem ao bom religioso, pois o primeiro não almeija prêmios, do tipo mansões de ouro, como recompensa por sua bondade. Apenas é bom por achar isso certo. Já muitos religosos, não todos é claro, almejam muito mais a recompensa.
No meu caso, sou o que sou e faço o que acho que é certo e correto.
Erro e acerto (sempre procuro acertar mais) e se um dia tiver uma eternidade confortável como prêmio irei adorar, porém, abdicarei dela se meus amigos, familiares, ateus ou não e meus animais não estiverem comigo. Não terei paz em saber que as pessoas que tanto amo, morreram por causa que não acreditaram em um Deus que não se mostra fisicamente e também não permitirei que uma força os apague de minha memória.
Grande abraço
Grande Alexandre,
ResponderExcluirSegue link do texto que escrevi http://OdlaveSreklow.blogspot.com/2010/03/historia-de-um-ateu-salvo-capitulo-1.html
Dá uma lida e se gostar comente.
Abração mano.
Odlave Sreklow.
Odlave, diante disso, que lamentável, não?
ResponderExcluirgostei do que o Alexandre falou:
"se um dia tiver uma eternidade confortável como prêmio irei adorar, porém, abdicarei dela se meus amigos, familiares, ateus ou não e meus animais não estiverem comigo. Não terei paz em saber que as pessoas que tanto amo, morreram por causa que não acreditaram em um Deus que não se mostra fisicamente e também não permitirei que uma força os apague de minha memória."
eu sempre brinco com a minha sogra que é crente das antigas e extremamente carola que se no céu não houver cães(que eu adoro) lá não o céu, pois se tem uma criatura que merece o céu são eles. menos os pitubulls violentos...kkkkkkkkkkkkkk
ela diz: "misericórida, misericórida..."
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEduardo, penso da mesma forma que você em relação aos cães, exceto com relação aos pitbulls...hehehhee
ResponderExcluirEles merecem ficar de guarda nos portões do céu! Rs
Abraço!
Olá, pode publicar o texto do meu blog. Desculpe-me a demora para responder, é que estive um tempo sem acessar a internet. Obrigado e vamos manter contato, gostei do seu blog.
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