Explico. Nós, evangélicos, afirmamos ser a Bíblia nossa regra de fé e prática. Declaramos a quem reivindicar nossos pressupostos de fé que o texto sagrado é infalível e sua inerrância nossa garantia por excelência. Sem gaguejar, confessamos nossa confiança no que diz a Bíblia como sendo tudo o que de Deus foi-nos revelado. Cada palavra é a exata expressão do que Deus queria dizer, pregamos com paixão. Não dá para negar. Essa é uma expressão de fé reconfortante. Pena não corresponder ao mundo vivido dos crentes.
Na prática, desconfiamos do texto canonizado. Cada um de nós canoniza seus próprios textos. A regra, silenciosa e hábil, é a da plausibilidade. Acolhemos com devoção e folguedo os textos cuja prática fazem todo sentido. Apagamos com distração e cinismo aqueles que se mostram toscos e inverossímeis. Praticamos sistematicamente, ao menos pretensiosamente, os conselhos paulinos da promoção da alegria e rejeição da ansiedade, aos Filipenses, mas sequer nos incomodamos com a dedicação paulina à Satanás do voluptuoso que praticou incesto, com o fim de purificar sua alma, aos Coríntios.
Fazemos conviver em nosso mundo, ambiguamente, duas crenças. Aquela que nos acomoda e conforta e a outra que permeia nossa vivência. Uma, promete-nos uma vida segura, porque correta e piedosa, e a outra, convence-nos do que faz sentido. Uma, falante e retórica. Outra, silente e real. Eis a vida do religioso e sua esquizofrenia de sobrevivência. Afirma sua fé como sem dúvida. Vive a sua vida como sem fé. Na fé pronunciada, esquece-se do que vive. Na prática escamoteada, esquece-se do que confessa. Não o culpo. Ou é crente e não se suicida. Ou é honesto e relativiza seus dogmas.
Sugira a um crente evangélico que o texto bíblico é tão contingente quanto sua vida e você será tratado como uma ameaça a sua segurança. Uma bactéria herética a ser combatida com doses de antibióticos escrupulosos. Você pode lidar com a Bíblia e toda e qualquer crença como verdades contingentes, contanto que não admita. Crenças contingentes só com a luz apagada.
Verdades contingentes são aquelas crenças que podem ser verdade lá, mas podem deixar de ser aqui. Que podem ser plausíveis quando Paulo ensina aos escravos cristãos a serem bom escravos, mas não ser em nossos dias, em que a consciência dos direitos humanos expurgou a prática da escravidão. Você pode aconselhar brasileiros vitimados pelo trabalho escravo a denunciarem seus patrões como criminosos, mas ao ler a Carta a Filemon, faz de conta que “servo” não é o mesmo que “escravo”. Ao ler o milagre realizado por Jesus de transformar água em muito e no melhor vinho, faz de conta que era suco de uva e continua a apregoar seu ascetismo.
E pensar que eu já sofri tanto, preocupado em como organizar a doutrina. Quem precisa de uma? Alguém, por favor, acende a luz e pede para os crentes olharem com coragem para a verdadeira fé, aquela que seu bom senso permite que participe de sua prática! Aquela que conversa reverentemente com a Bíblia, a tradição, a consciência, os sentidos do mundo vivido e aceita crer com modéstia, franqueza e sensibilidade.
Uma fé que só se mantém com a luz apagada é uma ficção. E João, que nos disse que Deus é luz e que nele não há treva alguma? E seu convite a andarmos na luz com a mesma coragem existencial de Jesus para termos comunhão uns com os outros? Afinal, comunhão é a arte da honestidade e a Bíblia, verdadeira demais para ser reduzida aos quartos escuros, sectários e covardes das ficções religiosas.
Fonte: http://elienaijr.wordpress.com/category/as-sagradas-entrelinhas
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